sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Cine mambembe ajuda a "matar" fome de agricultor no Nordeste

"Zé Sozinho" posa em projetor no Cine São Luís, em Fortaleza,
 onde aconteceu o Cine Ceará. (Jarbas Oliveira/Divulgação).

Publicado originalmente no site da Folha de S. Paulo, em 04/07/2001

Cine mambembe ajuda a "matar" fome de agricultor no Nordeste

Marcelo Bartolomei (Editor de Entretenimento da Folha Online)

O cinema mambembe já driblou a fome do agricultor José Raimundo Cavalcante, 59, o "Zé Sozinho", que há mais de 30 anos leva filmes nada inéditos a cidades que não têm salas de exibição no interior do Nordeste, na tentativa de suprir a falta de diversão e entretenimento.

Sempre com um projetor de filmes e um megafone debaixo do braço, Cavalcante, que disse sobreviver com suas exibições de R$ 0,50 por ingresso, faz parte da história do cinema nordestino e foi apresentado durante a 11ª edição do Cine Ceará, festival nacional de cinema e vídeo que apresentou filmes inéditos e a recente produção local em Fortaleza na semana passada.

Cavalcante carrega consigo, para onde vai, um megafone comprado em 1965, um microfone Panasonic amador, uma pilha pequena, um amplificador de pequeno porte, uma extensão, fita crepe e fios desemcapados. Com isso, consegue projetar sua voz e divulgar os filmes que exibe, chamando o público.

"Cinema é alegria. Agora só tem cinema nas cidades grandes. Eu queria morrer trabalhando com cinema", afirmou.

Sua última exibição foi na Quinta-feira da Paixão, em abril, em Caririaçu (CE), cidade próxima a Juazeiro do Norte, onde mora, e, com ela, "Zé Sozinho" disse ter ganho R$ 32. Ele está há mais de um ano sem fazer suas tradicionais exibições por não ter um projetor de filmes 35mm, padrão atual mais utilizado no cinema. Ele tem um projetor de filmes Super 8 e outro em 16mm.

Sua trajetória é irregular, dividida entre o trabalho no campo e a paixão pelo cinema, que o move desde os 28 anos. Atualmente, vive com o dinheiro que a mulher ganha no trabalho, sustentando a pequena família de três pessoas no interior do Ceará ["Zé Sozinho" mora com a mulher e uma filha de 16 anos, já que os outros filhos estão "encaminhados", como ele próprio diz], e vendendo latinhas de alumínio, a R$ 5 a cada dez quilos arrecadados.

Cavalcante nem se lembra mais do último filme que assistiu no cinema, fora os que têm em seu acervo de vídeos. "Hoje eu não posso pagar um ingresso de filme, sabe por que? Porque eu não tenho dinheiro para pagar R$ 6, que é o ingresso mais barato de cinema hoje em dia. Eu cobro R$ 0,50 e não tenho condições de pegar o que ganho com minhas exibições e pagar tudo isso para ir ao cinema. Quando eu pego um dinheiro desse na mão eu quero fazer algo pra mim. Para quem tem [dinheiro] é pouco, mas para mim é muita coisa. Com R$ 6 eu compro alimento para minha casa que dá para seis dias."

A escassez de dinheiro ficou maior depois que passou a frequentar a igreja Batista em Caririaçu e parou de exibir filmes eróticos, o seu maior acervo, de 60 fitas.

"Já está com mais de um ano que eu não vejo uma nota de R$ 50 no bolso só porque eu me recusei a passar filmes eróticos. Arrumei uma máquina de projeção com a igreja. Com este negócio eu não posso estar com filme imoral. O pastor me disse que eu podia exibir Os Trapalhões e outros filmes, mas não essas coisas imundas", disse o agricultor, que, atualmente na igreja, passa filmes religiosos.

Com o esquema mambembe, o agricultor já levou cinema a mais de mil cidades, de acordo com suas próprias contas. Ele exibia os filmes em qualquer salão desocupado e até mesmo em igrejas.

Com sua retórica, conquistava o público e lotava as salas improvisadas de cinema. "Coloco cartazes, uma musiquinha no gravador, ligo o amplificador e chamo o povo para assistir. Se não fizer isso não tenho fé de que vá encher, e se não encher eu não tenho como pagar o aluguel do prédio", disse.

Segundo ele, os filmes que mais lhe renderam audiência foram sobre o cangaço e os com o personagem Zé do Caixão, criado por José Mojica Marins. Ele já dispensou Mazzaroppi da sua lista de favoritos, por não atrair o público.

Seu objetivo, agora, é comprar uma TV de 32 polegadas para poder exibir vídeos em qualquer lugar do Nordeste, retomando sua atividade.

O jornalista Marcelo Bartolomei viajou a convite da organização do Cine Ceará

Texto e imagem reproduzidos do site: folha.uol.com.br

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