terça-feira, 13 de outubro de 2015

A vida de Eurico Reis é dar filmes aos outros



Publicado originalmente no site Diário do Alentejo, em 19-08-2011.

A vida de Eurico Reis é dar filmes aos outros

A vida de Eurico Reis, projecionista, poderia dar um filme. Mas o que o mais lhe interessa é poder projeta-los e mostrá-los às pessoas. Às pessoas que continuam a ir às salas de cinema ou a assistir aos filmes ao ar livre. O homem que cresceu e viveu com os olhos postos nos ecrãs de fundo branco continua na cabine, agarrado à máquina. Até porque é aqui que se sente bem, no seu cinema paraíso.

Texto Bruna Soares

Eurico Reis projeta filmes há anos. Há tantos anos que já lhe perdeu a conta. Não sabe quantas películas lhe passaram pelas mãos, porque esse somatório também há muito que o deixou de fazer. As histórias e as emoções dos filmes interessam- -lhe mais do que os números.

Num dia igual a tantos outros, onde o vento não sopra e o sol não brilha, Eurico Reis abre a porta da sua casa. Começa por mostrar umas fotografias que repousam sobre uma mesa. As mais gastas pelo tempo exibem-no ainda sem o cabelo grisalho. As provas estão à vista. É, sem dúvida, o ofício de uma vida.

Eurico Reis, como não poderia deixar de ser, revê-se na história de um filme. "Cinema Paraíso". A película conta a história de um rapazinho que, tal como Eurico, se apaixonou pelos encantos da sétima arte bem cedo. Em "Cinema Paraíso", "Totó", personagem principal, em criança, fugia para o cinema, espreitando as projeções dos filmes. Eurico, com oito ou nove anos, também era para lá que corria, fazendo companhia ao projecionista. Foi nos bastidores, tal como o ator principal do seu filme de eleição, que Eurico Reis aprendeu a amar o cinema.

"Cinema Paraíso" foi rodado em Itália. O enredo da vida de Eurico Reis, esse, passa-se em Aljustrel.

"Comecei a ir muito cedo para o Cine-oriental, dada a proximidade a que este estava da casa dos meus pais. Sempre me interessei. O senhor Francisco Conceição era, na altura, o proprietário do cinema e eu mostrava muito interesse, o que o levou a simpatizar comigo. Ajudava no que podia. Ia buscar com um carrinho de mão ou com uma carreta os filmes à estação de comboios e à rodoviária de Aljustrel. Colava os cartazes das películas em exibição no largo principal. Comecei por fazer estas tarefas. Em troca podia assistir aos filmes", conta Eurico, com um sorriso.

O menino que passou a infância com os olhos postos no ecrã de fundo branco fez-se homem. Cresceu em altura e consigo cresceram também as responsabilidades. "Quando já tinha uns 18 anos a Lusomundo comprou o cinema de Aljustrel e fiquei à frente da sala. Já estava preparado para assumir essa responsabilidade. Depois fui chamado para cumprir o serviço militar e tive de abandonar o cinema. No exército, no entanto, ingressei na especialidade foto-cine – Fotografia e Cinema dos Serviços Cartográficos do Exército. Aprendi inúmeras coisas na tropa. Interessei-me muito pela fotografia e comecei a fazer fotorreportagem. Deixei, nesta altura, um pouco o cinema, mas o bichinho ficou sempre cá".

Os dias do cinema Eurico Reis é, na verdade, um apaixonado por inúmeras artes. Para além de passar grande parte da sua vida agarrado à máquina de projeção, vendo os filmes através da própria cabine, passa também grande parte do seu tempo a pintar, a fotografar e a fazer serigrafia. "Sou um interessado pelas artes em geral. É este mundo que me fascina e que me move".

O cinema, sempre o cinema, porém, é o que o ocupa profissionalmente. Atualmente projeta filmes no auditório António Chainho, em Santiago do Cacém. É o homem da máquina de projeção. Conhece-lhe a mecânica, o ouvir do trabalhar. Faz parte de si, até porque o fez sempre.

Eurico, contudo, está consciente do que se passa atualmente no mundo do cinema. "O cinema, ao longo dos tempos, tem tido altos e baixos" E, como sabe do que fala, explica: "Quando apareceram as cassetes o cinema ressentiu-se. Muita gente começou a ver os filmes em casa. Depois vieram os DVD e, atualmente, a Internet disponibiliza todo o tipo de filme. Muitos, inclusive, ainda estão em exibição no seu país de origem. A magia do cinema, aquela pela qual se esperava meses para se ver o filme mais famoso, perdeu-se".

Eurico foi desse tempo, do tempo em que se esperava para ir ver o filme ao cinema. "Para as películas chegarem à província era necessário esperar muito. Primeiro rodavam nas grandes salas, que estavam nas grandes cidades. Só passado muito tempo é que chegavam e nesse dia, no dia em que eram exibidos, a sala enchia. O povo vestia-se a rigor e ia ao cinema, que era um ponto de encontro e de convívio".

De uma coisa, contudo, Eurico tem certeza. "Quem gosta de cinema continua a ir. O ambiente da sala, os sons, a grandeza do ecrã e toda a envolvência são coisas que não se conseguem reproduzir em casa. Podemos ter um ecrã de topo, com alta definição, que não temos as mesmas sensações de estar a ver o filme no cinema. Essa é a magia que nunca se perderá".

Eurico continua a promover o cinema como pode e tenta levá-lo a todos os sítios. Tanto que, há uns anos, adquiriu uma máquina de cinema portátil. "Posso passar cinema em todos os sítios. Basta-me ter uma parede ou uma tela branca". É o cinema na rua, ao ar livre, lembrando as antigas esplanadas.

Em 2000 Eurico avançou para ideia de fazer cinema itinerante. E a sua máquina, de origem chinesa, já correu inúmeros recantos do Alentejo. "Dá-me prazer levar o cinema às freguesias mais isoladas. Estive em vários sítios onde as pessoas nunca tinham visto cinema. Por exemplo, na aldeia de Estrela, no concelho de Moura, a primeira vez que as pessoas viram cinema foi através do meu sistema. Isto são experiências e sensações que não se esquecem".

O cinema ao ar livre, para Eurico Reis, "é muito cativante". "A máquina de projeção está no meio das pessoas. As pessoas acompanham todo o processo. Veem os rolos das bobines, as películas, ouvem o barulho da máquina a rodar. É um cinema de proximidade. As crianças ficam totalmente encantadas e a sensação é muito boa".

Mas também o cinema itinerante já teve melhores dias. "Este verão está muito fraco. As verbas para este tipo de atividades estão reduzidas e é muito difícil".

Eurico continua, porém, a meter a máquina a trabalhar. "Pode estragar-se por rodar muitos filmes, mas também pode estragar-se por estar demasiado tempo parada", ironiza.

Passados tantos anos, Eurico Reis continua com os olhos postos no ecrã de fundo branco. Continua a ver muitos dos filmes através da cabine e o futuro é coisa que não o assusta. E, neste sentido, o cinema digital também não. "Tudo evolui. É o progresso", considera, até porque, como diz uma das frases mais célebres do mundo do cinema ("E tudo o vento levou"), "afinal de contas, amanhã será outro dia!".

Texto e imagem reproduzidos do site: da.ambaal.pt

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