quarta-feira, 30 de julho de 2014

Expansão da projeção digital consolida o fim da centenária película.


Publicado originalmente no Jornal ZH, em 23/05/2014.

Fim da fita

Expansão da projeção digital consolida o esperado fim da centenária película.

Exibidores brasileiros acelaram conversão em meio à dicussão sobre mecanismos de financiamento estatal e preocupação com os cinemas de pequeno porte voltados à programação menos comercial

por Marcelo Perrone *

Com a bola em campo e o tempo se esgotando, a conversão dos cinemas brasileiros à exibição digital corre contra o relógio ainda discutindo as regras do jogo. A partir de julho, os estúdios não têm mais compromisso de oferecer lançamentos em película 35mm. Como o Brasil recém se aproxima do índice de 50% da digitalização de seu parque exibidor, a oferta deve ser prolongada em quantidade progressivamente menor, o que faz acelerar o processo — especialistas do setor estimam que o 100% devem ser atingidos até o final de 2014.

Se os grandes exibidores estão mais adiantados na transição, os pequenos e médios encaram a adaptação com urgência. Mais do que modernização tecnológica, trata-se da sobrevivência no negócio. No Brasil, a transição conta com apoio do governo federal, via uma linha de financiamento disponibilizada pelo BNDES e gerenciada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Para o exibidor ter acesso ao crédito, criou-se a figura do integrador, pessoa jurídica que faz a ponte entre o interessado, o banco e os fabricantes de equipamentos. O modelo de financiamento adota a VPF (Virtual Print Fee, a “taxa de cópia virtual”), repasse ao exibidor do valor economizado pelo distribuidor na confecção das cópias em película.

— Quem não digitalizar morre — diz o advogado e cineasta Henrique de Freitas Lima, representante regional do consórcio encabeçado pela Quanta DGT, que tem a maior carteira de clientes entre as duas integradoras em operação no país. — Já fechamos com 30 salas no Estado. As distribuidoras vão começar a exigir a projeção DCP — complementa, referindo-se ao Digital Cinema Package, o "pacote" de dados encriptados em um HD que assume a função da cópia, dentro dos padrões técnicos estabelecidos.

Testada de forma efetiva desde 1999, a tecnologia de projeção digital só ganhou impulso em 2005, quando os grandes estúdios de Hollywood lançaram as diretrizes do Digital Cinema Initiatives (DCI), que vem ser a padronização dos equipamentos que garantem a distribuição e a projeção digital de alta performance.

Segundo Freitas Lima, o sistema formado por um projetor com resolução 2K, som 5.1 e servidor sai por cerca de R$ 120 mil, rateados em 72 parcelas a juro zero para exibidores com até quatro salas. Incluindo royalties do software, seguro e manutenção, o custo mensal do exibidor fica entre R$ 2,5 mil a R$ 3 mil por sala. A dívida é amortizada com o repasse de VPF e outros subsídios estatais. Para quiser incrementar sua sala com o 3D, o investimento extra é de R$ 50 a R$ 100 mil, conforme a tecnologia adotada, operação não contemplada no financiamento.

Afora dúvidas quanto a viabilidade do negócio e defasagem tecnológica, inquieta os pequenos e médios exibidores o regramento da VPF. O contrato prevê um repasse ao exibidor de até US$ 650 (cerca de R$ 1,5 mil) por título exibido por três semanas em 60% das sessões apresentadas pela sala. O valor diminui proporcionalmente ao tempo em cartaz e ao número de projeções.

— Esse sistema vale a pena para quem exibe blockbusters e tem condições de obedecer às regras do VPF, que estabelece um mínimo de semanas em cartaz daquele título — diz Gustavo Leitão, editor do Filme B, portal especializado no mercado cinematográfico. — Os que passam conteúdo alternativo precisam da diversidade para sobreviver. Esses filmes são distribuídos por empresas que não têm condições de arcar com os gastos do VPF. Esse tipo de exibidor está numa espécie de limbo entre o 35mm e o digital de ponta.

Concentração de blockbusters é um risco

Entre as salas com perfil mais alternativo de Porto Alegre, só o Guion tem a digitalização no horizonte próximo.

— É um caminho sem volta. Já estou empacando por falta de filmes em 35mm – afirma Carlos Schmidt, proprietário das três salas localizadas na Cidade Baixa. — Preciso diminuir custos para absorver novos. E uma coisa é garantir agora que terei o filme que quiser exibir, outra é a lógica das distribuidoras na hora de decidir quem exibirá determinado filme em cada praça.

Os responsáveis por espaços como Cine Bancários, Cine Santander, Cinemateca Paulo Amorim e Sala P.F. Gastal reconhecessem a necessidade de adaptação, mas colocam o investimento sob a perspectiva de essa necessidade ser imediata, diante do perfil da programação, a possível redução de custos, a criação de linhas específicas de financiamento e os entraves burocráticos daquelas atreladas ao poder público.

Nestas, a programação vai sendo tocada com filmes 35mm de acervo e liberados por grandes exibidores, Blu-ray (que tem ótimo resultado em telas menores), sistemas digitais alternativos e até mesmo DVD.

— Esse tipo de exibidor está em uma espécie de limbo entre o 35mm e o digital de ponta, com modelos de projetores de resolução inferior, conhecidos como e-cinema. O problema é que esses modelos estão ao mesmo tempo abaixo da qualidade de imagem do 35mm que eles antes exibiam e distantes do padrão do digital que o espectador está se acostumando a experimentar no multiplex. Em certo sentido, o 35mm unificava o padrão de exibição entre o circuito de arte e o circuito comercial. Agora, com o digital, essa distância está gritante. Ao mesmo tempo, o espectador conta com equipamentos de audiovisual cada vez melhores em casa. Dificilmente os exibidores de arte conseguirão sobreviver por muito tempo usando o e-cinema. Eles terão que achar uma solução para se aproximar outra vez do padrão de ponta.

Em razão de dúvidas e reparos de exibidores e distribuidores de pequeno e médio portes às complexidades que regram o repasse da VPF e do receio de que a digitalização estimule a concentração ainda maior de blockbusters no circuito, a Ancine abriu uma consulta pública até 20 de junho. Discutem-se também formas de se apoiar salas geridas pelo poder público, ONGs e associações com perfil de difusão cultural.

Um novo subsídio anunciado pela Ancine para os pequenos exibidores resulta desse movimento aponta Freitas Lima. A reformulação do Programa de Adicional de Renda (PAR) para os pequenos exibidores, em 2014, permite que os recursos liberados sejam aplicados para amortizar os valores não cobertos pela VPF, repasse que será encerrado em 31 de dezembro de 2019.

— Os valores e a forma de acesso serão definidos nas próximas semanas. Este subsídio se juntará ao já existente no programa oficial, de R$ 15 mil por sala para empreendedores com até quatro salas. Como o juro do financiamento é zero, este segundo subsídio é um grande avanço para financiar totalmente a digitalização dos pequenos exibidores.

Dono do cinema Santa Isabel, única sala de Viamão, Arnaldo Henke diz não ter condições de assumir o financiamento da Ancine:

– Vou tentar outras vias para não fechar. Paguei R$ 20 mil por um aparelho alemão de 35mm em 2007. Vai tudo pro lixo. Cobro ingresso de R$ 5. Se botar o digital, vou ter que dobrar o preço.

Conversão a passos rápidos no Interior

Proprietário do Cine Cisne, com duas salas em Santo Ângelo, Flávio Panzenhagen não esperou financiamento oficial e há um ano e meio opera com o digital 3D:

— Como ex-presidente do sindicato dos exibidores, estava por dentro do que aconteceria. Investi cerca de R$ 400 mil, com recursos próprios e financiamento bancário. Eu levava cinco semanas para estrear um filme. Hoje, sou lançador de filme. Temos que ir atrás.

A corrida de exibidores do Interior indica a urgência da conversão. Janete Jarczeski, do Cine Dunas, com uma sala em Rio Grande e outra no Cassino, deve assinar contrato entre junho e julho.

— O circuito em Rio Grande está se expandindo com dois shoppings e promessa de duas grandes redes. Digitalização não é opção, é imposição – afirma Janete.

Roberta Gorniski, diretora do Movie Arte, diz que vai digitalizar as salas de Santa Maria, Bento Gonçalves e Erechim até outubro, e com 3D. Roberto Levy, do Cine Globo, de Três Passos, reforça o grupo:

– Se não entrar nessa, não poderei mais exibir filmes. Com o digital, poderemos fazer coisas como a transmissão de jogos. Nossa região tem 170 mil pessoas. Vou tentar, né?

Segundo Freitas Lima, a entrega dos equipamentos e sua instalação só se dá após um período mínimo de 90 dias após a assinatura dos contratos. Este prazo se deve aos mecanismos burocráticos de importação e regularização no país dos equipamentos:

— O prazo coincide com a previsão do fim das cópias em 35mm.

Expansão e transição

— O parque exibidor brasileiro tem ritmo de crescimento constante nos últimos anos. Encerrou 2013 com 2.679 salas em 721 complexos.

— No primeiro trimestre de 2014, este número subiu para 2.738 salas em 732 complexos.

— Cerca de 1,5 mil salas estão se digitalizando via BNDES/Ancine. Ao menos 900 investiram ou investem recursos próprios. Outras 300 estão fora do processo neste momento.

— Apesar do crescimento, em 2013 o Brasil tinha uma sala de cinema para cada 75 mil habitantes, menos do que Argentina (51 mil habitantes por sala) e México (21 mil por sala) – estes em 2012.

— 392 municípios (7%) contam com sala de cinema e compreendem 53,3% da população brasileira.

— A rede mexicana Cinépolis (no RS, com salas em Caxias) é a única 100% digitalizada. A americana Cinemark tem índice de 58,7%, atrás das brasileiras Cineflix (66,6%) e Cinesystem (60,4%).

— 1,7 mil (64%) das salas ainda contam com projeção em película 35mm, parte delas em operação conjunta com o suporte digital

Fontes: Ancine e Filme B (março de 2014)

A transição digital

– No final dos anos 1990, a indústria cinematográfica começou a levar mais a sério a tecnologia digital para uso em escala comercial. Em 1999, a exibição da animação da Disney Fantasia 2000 empolgou os executivos dos estúdios, até então insatisfeitos tanto com a qualidade da imagem quanto com os custos da mudança radical de um sistema em bom uso há mais de cem anos.

– A tecnologia utlizada à época foi a DLP Cinema, que tinha como sistema de compressão de vídeo o MPEG-2. Este exibia problemas de composição da imagem, sobretudo na reprodução de cenas de movimento com borrões e rastros. A conclusão foi a de que essa melhor qualidade da imagem dependia de avanços tecnológicos, como processadores mais rápidos. Mas estava claro, ao menos, qual o caminho a percorrer. Alguns cinemas exibiram neste formato embrionário filmes como Matrix e Colateral – inclusive no Brasil, onde Cidade de Deus foi uma das produções nacionais pioneiras convertidas ao digital.

– Nessa mesma época, experiências de exibição digital se davam em múltiplas plataformas (como Betacam Digital, DVCAM e Mini-DV), com desempenho razoável em telas de pequenas dimensões. O problema da perda da qualidade decorrente da compressão da imagem, em especial daquela captada originalmente em película 35mm, começou a ser solucionado com a aplicação do sistema JPEG 2000.

– Diante da viabilidade da distribuição e projeção de filmes no suporte digital de alta performance, os grandes estúdios de Hollywood criaram uma padronização com o fim de garantir o desenvolvimento de tecnologia e equipamentos comuns, diminuir custos e garantir que suas produções chegassem aos cinemas com os parâmetros de qualidade estabelecidos por seus realizadores. Em 2005, Fox, Columbia, Disney, Warner, Universal, MGM e Paramount firmaram o Digital Cinema Initiatives (DCI), protocolo que estabelece as rigorosas normas técnicas do cinema digital.

– As diretrizes do DCI determinam o sistema de compressão (JPEG 2000), padrões de áudio e cor, velocidade de projeção, proteção de conteúdo e até especificam detalhes como luminosidade da lâmpada de projeção e temperatura de operação da cabine. O padrão DCI dita como resolução de imagem os chamados 2K (1998 X 1050 pixels ou 2048 X 858 pixels, conforme a proporção da tela) e 4K (4096 X 2160 pixels). Quanto mais pixels (pontos preenchidos na tela), melhor a qualidade.

– A projeção DCI encontra-se em um estágio de igual qualidade à da projeção em 35mm.

– As projeções digitais alternativas, fora do padrão DCI, que usam a compressão MPEG, exemplo do sistema Auwe, tendem a desaparecer.

– A produção de cada cópia de filme em película custa, entre US$ 1 mil e US$ 2 mil, diante dos US$ 100 da cópia digital.

* Colaborou Rodrigo Azevedo

Foto: Júlio Cordeiro / Agencia RBS

Texto e imagem reproduzidos do site: zh.clicrbs.com.br

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