quarta-feira, 30 de julho de 2014

A conversão digital


Publicado originalmente no Jornal ZH/Blog/Cineclube, em 26/03/2014.

A conversão digital

Vi apenas recentemente o documentário Side by Side, de Christopher Kenneally, muito elogiado na sua passagem pelo Festival de Berlim de 2012 por apresentar o primeiro grande painel sobre o irreversível processo de conversão total do cinema ao suporte digital. O ator Keanu Reeves, coprodutor do longa, entrevista dezenas de nomes expressivos da indústria, entre diretores, fotógrafos, montadores, engenheiros e técnicos para traçar um completo histórico da transição que está sepultando o uso do agonizante filme em película. O resultado é didático aos não muito íntimos desse artesanato, aos cinéfilos e também aos que têm conhecimentos mais aprofundados sobre o tema.

Side by Side mostra que os mais de cem anos de bons serviços prestados pelo celuloide não foram espanados assim tão rapidamente pelo digital, como indica a velocidade dos avanços tecnológicos da última década. O ensaio para essa transição, lembra George Lucas, um dos pioneiros mentores do processo de conversão, teve início com a montagem eletrônica proporcionada, a partir de 1980, por sistemas como EditRoid e, na sequência, o revolucionário Avid.

O documentário sublinha a importância do diretor de fotografia inglês Anthony Dod Mantle. No embalo dos preceitos estéticos do Dogma 95, movimento lançado por cineastas dinamarqueses, ele “filmou”, para Thomas Vinterberg, Festa de Família (1998), com uma câmera Sony PC3, no suporte mini-DV (Akio Morita, fundador da Sony, colaborou muito nesses avanços, em razão de sua obstinação em colocar a excelência eletrônica a serviço do cinema).

Empolgado com o resultado de Festa de Família, em especial pela agilidade e pelos enquadramentos que a pequena câmera de mão permitia no set, o diretor Danny Boyle chamou Mantle para Extermínio (2002) — Boyle queria uma forma rápida e barata de captar imagens nas ruas de Londres transformada um cenário apocalíptico.

O suporte digital foi abraçado pelos realizadores independentes, que vislumbraram o fim das amarras impostas por grandes orçamentos e diretrizes de estúdios. Mas havia a resistência dos que não viam o digital como “cinema de verdade”, em razão, sobretudo, da baixa qualidade da imagem em relação à película. Esta barreira começou a ser vencida quando a Sony criou para George Lucas realizar Star Wars: Episódio II — Ataque dos Clones (2002) a câmera F900, a primeira no suporte HD voltada ao cinema industrial.

A parceria entre realizadores e cientistas no desenvolvimento de equipamentos, lembra o documentário, foi decisiva nessa evolução. Limitações como resolução da imagem, profundidade de campo e gama de cores foram aos poucos sendo superadas com ajuda de diretores como Michael Mann, que usou uma câmera Thompson Viper em Colateral (2004), alcançando excelentes resultados em imagens noturnas. Tradicional fabricante de câmeras analógicas, a Panavision, em parceria com a Sony, criou a Genesis, primeira câmera “full frame” (sensor no tamanho do quadro do filme 35mm), na qual se podia ainda usar sua vasta linha de lentes — Mel Gibson fez com uma dessas Apocalypto (2006).

Um passo ainda mais largo, fundamental para seduzir os que ainda viam com desconfiança a qualidade da captação de imagem digital, foi dado por Jim Jannard, milionário dono da fábrica de óculos de sol e equipamentos esportivos Oakley. Em 2007, ele apresentou a Red One, com resolução de 4K, equipamento que conquistou realizadores como Steven Soderbergh, usuário de primeira hora do digital — o resultado está em Che (2008). A pedido da David Fincher, Jannard desenvolveu modelos leves da Red One, em fibra de carbono, usados em A Rede Social (2010).

Trabalhando com engenheiros da Silicon Image, Boyle e Mantle usaram novas câmeras portáteis em Quer Quer ser um Milionário? (2008), que valeu a Mantle o histórico primeiro Oscar de melhor fotografia para um filme captado em digital. James Cameron, por sua vez, desenvolveu com a Sony a câmera F 950, com qual realizou Avatar, filme definidor da nova era do cinema digital.

A corrida entre os fabricantes, levou à criação, pela Arriflex, outra tradicional fabricante, da Alexia, câmera usada por Martin Scorsese em A Invenção de Hugo Cabret (2011) e por Lars Von Trier em Melancolia (2011). A Red respondeu com a geração Epic, usada por Fincher em Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2012) e por Peter Jackson em O Hobbit — Uma Jornada Inesperada (2012). Tanto uma como outra câmera ganharam a aprovação dos mais experientes diretores de fotografia, na linha “agora sim”.

Discorrendo sobre o progresso do digital em áreas como montagem (Scorsese lembra os tempos em que literalmente colocava seu sangue nos filmes, no processo de corte e colagem na moviola), correção de cor e efeitos especiais, Side by Side chega a etapa que, em 2012, consolidava o fim do ciclo analógico no cinema: a distribuição de filmes e a projeção digitalizadas. O fim do celuloide na indústria, em resumo, é favas contadas. Mas os que seguem abraçados ao processo fotoquímico defendem com bons argumentos sua sobrevivência em um novo parâmetro, o da preservação.

Os realizadores que ainda defendiam, em 2012, a superioridade da película — time pequeno mas reforçado por nomes graúdos, como Christopher Nolan — falavam de texturas e nuanças ainda não alcançadas pelo digital. São vozes quase solitárias. Questões mais relevantes dizem respeito à maneira adequada de se preservar um filme. A cópia em película, defendem especialistas como Scorsese, ainda parece ser a mais segura, afinal tem sido assim há mais de cem anos. É lembrado que já foram criados mais de 80 diferentes suportes de vídeo, muitos deles não tendo hoje equipamentos de reprodução — Fincher, aliás, diz que junto a todos os trabalhos em variados suportes que guarda desde os tempos da publicidade encaixota também o respectivo aparelho reprodutor. Tem ainda a questão da fragilidade dos HDs de armazenamento etc. Mas Lucas e nomes como os irmãos Wachowski dizem que isso é bobagem, que para cada problema haverá uma plena solução.

Side by Side ilumina questões muito interessantes nesta debate tecnológico. Os tempos da película, por exemplo, diante de da liberdade permitida pelo digital n ato de fazer-apagar-refazer, exigia mais planejamento e empenho criativo dos profissionais no set e na pós-produção, dado o custo maior da empreitada com um filme rodando na câmera ? A facilidade e o barateamento do processo de se fazer cinema traz a reboque, por si só, avanços de linguagem? Diz David Lynch: “Todo mundo tem papel e lápis a mão. Mas quantas história grandiosas foram escritas? É o mesmo com o cinema”. Para ele e outros bons, segue valendo o óbvio: o digital é só uma nova ferramenta; o cinema sempre dependerá do bom uso que se fizer dela.

E de que vale todo o empenho para se chegar a excelência da imagem se as novas gerações cometem o sacrilégio de ver filmes em computador e, pior, na tela do celular? E como encarar a ameaça de o cinema deixar de ser palco de uma experiência de contemplação e desbunde coletivo na sala escura para se tornar um prazer solitário? É possível reproduzir esse espírito de coletividade no ambiente virtual? Como lidar com a enxurrada de filmes ruins que a democratização da imagem proporciona, infinitamente superior à quantidade de títulos relevantes? E o uso indiscriminado e injustificado do 3D para ampliar o faturamento? Essas são algumas das questões lançadas pelo filme que seguem reverberando e, até aqui, ainda não encontraram respostas.

Para encerrar, uma máxima de Scorsese: “O verdadeiro autor do filme é o projecionista”. Isso porque, embora seu apego sentimental à película, o diretor saúda o fato de o suporte digital de alto padrão homologado pelos grandes estúdios (não confundir com as gambiarras que se tornaram comuns no Brasil) diminuir os riscos de ocorrer diante do espectador um dos grandes temores do cineasta: ver o filme que criou com tanto carinho e suor ser arrasado na tela grande por uma janela errada, uma cópia desgastada, um projetor capenga e descalibrado ou um som ruim.

Postado por Marcelo Perrone no site wp.clicrbs.com.br/cineclube.

Texto e foto reproduzidos do site: wp.clicrbs.com.br/cineclube.

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